Embora o Estado de Emergência tenha cessado a sua vigência no passado dia 02 de Maio, o Decreto-Lei n.º 19-A/2020 de 30 de Abril, vem estabelecer que, fora do Estado de Emergência eventuais direitos à reposição do equilíbrio financeiro, fundados na ocorrência da pandemia COVID-19, apenas podem vir a ser concretizados através da prorrogação do prazo de execução das prestações ou de vigência dos contratos públicosnão dando lugar, independentemente de estipulação legal ou contratual, a revisão de preços ou assunção, por parte do contraente público, de um dever de prestar ao contraente privado.

1. Enquadramento legal

a. Normas aplicáveis durante a vigência do Estado de Emergência (até 02.05.2020) – Suspensão do direito à reposição do reequilíbrio financeiro

O Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020 de 02 de Abril que procedeu à primeira renovação do Estado de Emergência, suspendeu parcialmente, entre outros, o direito da propriedade e iniciativa económica privada, designadamente, o direito à reposição do equilíbrio financeiro de concessões em virtude de uma quebra na respetiva utilização decorrente das medidas adoptadas no quadro do Estado de Emergência (cfr. al. b) do art. 4º).

 Já o Decreto do Presidente da República n.º 20-A/2020 De 17 de Abril que procedeu à segunda renovação do Estado de Emergência, veio suspender parcialmente, entre outros, o direito da propriedade e iniciativa económica privada, designadamente, o direito à reposição do equilíbrio financeiro de concessões ou de prestações de serviços em virtude de uma quebra na utilização decorrente das medidas adoptadas no quadro do Estado de Emergência.

 Por sua vez, o recente Decreto-Lei n.º 19-A/2020 de 30 de Abril, prevê no n.º 1 do seu art. 3º que “Nos termos da alínea b) do artigo 4.º do Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, de 2 de abril, são suspensas, de dia 3 de abril de 2020 até ao termo da vigência do estado de emergência, as cláusulas contratuais e disposições normativas que preveem o direito à reposição do equilíbrio financeiro ou a compensação por quebras de utilização em qualquer contrato de execução duradoura em que o Estado ou outra entidade pública sejam parte, incluindo contratos de parceria público-privada, não podendo os contraentes privados delas valer-se por factos ocorridos durante o referido período”.

b. Norma aplicável após a cessação da vigência do Estado de Emergência (a partir de 03.05.2020) – Restrição do direito à reposição do equilíbrio financeiro

 O n.º 2 do artigo 3º do Decreto-Lei n.º 19-A/2020 de 30 de Abril, sob a epígrafe “Pretensões compensatórias e de reposição do equilíbrio financeiro” vem estabelecer que, “Sem prejuízo do disposto no número anterior quanto ao período a que se reporta, nos contratos em que se preveja expressamente o direito do contraente ou parceiro privado a ser compensado por quebras de utilização ou em que a ocorrência de uma pandemia constitua fundamento passível de originar uma pretensão de reposição do equilíbrio financeiro, tal compensação ou reposição só pode ser realizada através da prorrogação do prazo de execução das prestações ou de vigência do contrato, não dando lugar, independentemente de disposição legal ou estipulação contratual, a revisão de preços ou assunção, por parte do contraente ou parceiro público, de um dever de prestar à contraparte”.

 O disposto no recente Decreto-Lei n.º 19-A/2020 de 30 de Abril entrou em vigor no passado dia 01 de Maio de 2020 e apenas cessará a sua vigência no momento em que a Organização Mundial de Saúde determine que a situação epidemiológica do vírus SARS-Cov-2 e da doença COVID-19 não configuram uma pandemia.

 A norma contida no n.º 2 do art. 3º do Decreto-Lei n.º 19-A/2020 de 30 de Abril, vem, assim, restringir o exercício do direito à reposição do equilíbrio financeiro dos contratos públicos, permitindo apenas a modificação do contrato através da prorrogação do prazo de execução das prestações ou da sua vigência nos casos em que o fundamento para o exercício daquele direito seja a ocorrência da pandemia COVID-19.

 Pelo exposto, poder-se-á concluir que, caso venha a verificar-se uma perturbação na execução de quaisquer contratos públicos de execução duradoura, incluindo uma perturbação significativa na equação económico-financeira dos contratos, em virtude da pandemia COVID-19, os contraentes privados apenas terão direito à modificação do contrato através da prorrogação do prazo de execução das prestações contratuais ou da sua vigência, ficando impedidos de exercer o direito à modificação do contrato através de revisão de preços e o direito a receber quaisquer compensações financeiras.

c. Breve nota sobre o direito à reposição do equilíbrio financeiro dos contratos públicos previsto no Código dos Contratos Públicos

 Para garantir a reposição do equilíbrio financeiro do contrato, o Código dos Contratos Públicos prevê um conjunto de situações típicas em que a sua aplicação justifica o direito do contraente privado a uma modificação do contrato ou a uma compensação financeira (cfr. art. 314º do CCP):

I. Modificação do objecto do contrato por decisão imposta unilateralmente pelo contraente público;

II. Medidas administrativas de carácter geral que, ainda que produzidas fora do âmbito contratual, se repercutem sobre a execução do contrato;

III. Alteração anormal e imprevisível das circunstâncias alheias às Partes contratantes – O caso imprevisto

 Nos situações previstas em i) e ii) supra, caso as modificações contratuais impostas unilateralmente ou os actos jurídicos de eficácia geral externos ao contrato, respectivamente, se repercutam de modo específico na situação contratual do contraente privado, é-lhe conferido:

  • o direito à modificação do contrato, designadamente, através de revisão de preços, prorrogação de execução das prestações contratuais ou da vigência do contrato ou;
  • o direito a uma compensação financeira , correspondente ao decréscimo das receitas esperadas ou ao agravamento dos encargos previstos para a execução do contrato.

 Já, na situação prevista na al. iii) supra, uma vez que o facto que dá origem à quebra do equilíbrio do contrato é imprevisto e alheio à vontade das partes, o legislador entendeu que as consequências lesivas desse facto não devem ser exclusivamente suportadas pelo contraente público (que não concorreu para elas) nem pelo contraente privado (que vê o risco do negócio significativamente agravado), pelo que, é-lhe conferido:

  • o direito à modificação do contrato designadamente, através de revisão de preços, prorrogação de execução das prestações contratuais ou da vigência do contrato ou:
  • o direito a uma compensação financeira segundo critérios de equidade.

2. Comentários à actual restrição do direito à reposição do equilíbrio financeiro e a compensações financeiras

 A norma contida no n.º 2 do artigo 3º Decreto-Lei n.º 19-A/2020 de 30 de Abril, afigura-se, desde logo, desadequada e desproporcional, máxime, nos casos em que em virtude da pandemia COVID-19 – situação que configura uma alteração anormal e imprevisível das circunstâncias por facto não imputável às Partes – a manutenção da execução do contrato se revele excessivamente onerosa para o contraente privado, devido, por exemplo, ao aumento dos custos com pessoal e Equipamentos de Protecção Individual.

 Nestes casos, somos da opinião que não poderá deixar de ser conferido ao contraente privado o direito à modificação do contrato através de revisão de preços ou a uma compensação financeira segundo critérios de equidade.

 Até porque, a norma contida no n.º 2 do artigo 3º do Decreto-Lei n.º 19-A/2020 de 30 de Abril, restringido o direito à reposição do equilíbrio financeiro dos contratos públicos, levanta sérias dúvidas quanto à sua conformidade com o disposto na Constituição da República Portuguesa. Porquanto,

 O exercício de direitos, liberdades e garantias apenas podem ser suspensos pelos órgãos de soberania em caso de Estado de Sitio ou Estado de Emergência (cfr. artigo 19º da CRP), sendo que, o Estado de Emergência, uma vez declarado, nomeadamente com fundamento numa situação de calamidade pública, apenas pode determinar a suspensão de alguns direitos, liberdades e garantias susceptíveis de serem suspensos.

 Acresce que, a declaração do Estado de Emergência, sem prejuízo de ter de ser autorizada pela Assembleia da República, é uma competência própria do Presidente da República Portuguesa, a qual tem de ser adequadamente fundamentada e conter a especificação dos direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica suspenso (cfr. n.º 5 do art. 19º e al. d) do art. 134º da CRP).

 Ora, o Estado de Emergência cessou a sua vigência às 23:59 do dia 02.05.2020, pelo que, a partir desse momento deixou de vigorar e ficou vedada a possibilidade de suspensão do exercício de direitos, liberdades e garantias (cfr. n.º 1 do artigo 19º da CRP).

 Contudo, o n.º 2 do art. 3º do Decreto-Lei n.º 19-A/2020 de 30 de Abril, aprovado em Conselho de Ministros, ao impedir a modificação dos contratos públicos através de revisão de preços e que os contraente privados possam ser compensados financeiramente, com fundamento na ocorrência da pandemia COVID-19, vem restringir o exercício do direito dos contraentes privados à reposição do equilíbrio financeiro previsto nos artigos 282º e 314º do CCP, suspendendo assim para todos os efeitos, e ainda que de forma parcial, aquelas disposições legais.

 O princípio do respeito pelo equilíbrio financeiro tem fundamento na Constituição da República Portuguesa ,nomeadamente nas disposições relativas à tutela do direito de propriedade privada e do direito a justa indemnização pela ablação por acto público de uma posição jurídica privada com valor patrimonial, consagrados no artigo 62º da CRP e, de resto, nos princípios da confiança, da justiça, da boa fé e da prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses dos particulares (cfr. artigos 2.º e 266.° n.ºs 1 e 2 da CRP).

 E, a assim ser, a norma contida no n.º 2 do artigo 3º Decreto-Lei n.º 19-A/2020 de 30 de Abril aos suspender um direito com fundamento e tutela constitucional estará a violar o disposto no n.º 1 do art. 19º da CRP, o que poderá levar à declaração de inconstitucionalidade desta norma.